quinta-feira, 27 de maio de 2010

sobre as palavras

Eu também já fui daquelas pessoas que achou que o sofrimento nos aprofunda as palavras. Que a dor tem essa dimensão mágica de nos fazer ser mais nós e expressar-nos de uma forma mais profunda. Que nessas alturas as palavras nos saem quando querem, ganham vida própria, juntam-se e multiplicam-se em frases que escapam a quem as escreve e têm a profundidade de tocar o que é importante. Era das que achava que nunca tinha escrito tão bem na vida como quando andava em dramas adolescentes shakespeareanos, à beira da loucura e de largar tudo por um grande amor. Porque a vida era demasiado limitada para abarcar tudo o que eu sentia. E que jurava que mais ninguém sentia. Porque o que eu escrevia ganhava uma dimensão homérica e quase me sentia identificada com todos os grandes sofredores deste mundo.

Agora já não sou assim. Tudo isso já não importa. É até bastante patético porque o que se escreve dessa forma não passa de uma encenação para nós mesmos. Porque quem acha que a profundidade da dor aumenta a complexidade das palavras engana-se. Uma palavra será sempre uma palavra. Com a diferença de a escrevermos para nós ou para os outros. E quando sofremos escrevemos para os outros. Disso não tenho eu dúvida e não há quem me convença do contrário. Por muito que digamos que não, que é apenas desabafo, que são apenas insónias. Não é.

Não escrevi uma linha quando o meu pai morreu. Foram quase dois anos a debitar palavras em piloto automático. Tanto as podia escrever acordada ou a dormir. E só por trabalho. Nunca sobre o que se estava a passar. A dor já em si tão avassaladora que as palavras se tornam redundantes naquilo que não se quer ver nem sentir.

E depois quando se fecha um ciclo de vida e se inicia outro é como começar do zero. Deixei de escrever sobre as coisas tristes porque não vale a pena. Não eu própria as quero ler. Gosto de deixar em palavras as recordações. De falar com quem não está. De atirar cá para fora todas as dúvidas que me vão na cabeça. Todas as coisas bonitas que acontecem. Todas as esperanças e sonhos que temos e partilhamos. Porque a vida é feita disso.

No dia 5 de Junho de 2008 descobri que já não tinha nada a perder. Porque deixei de ter tudo o que tinha. Perdi o norte e o sentido. Assim sendo, só poderia mesmo ganhar. Nem sempre é pacífico, mas é sempre um caminho que se faz. E se continua a fazer. E, surpreendentemente e assustadoramente, só depende mesmo de nós.

Como sou teimosa meti na cabeça que ia ser feliz. E agora descobri que sou. Com tudo o que tenho e não tenho. Com todas as felicidades e desesperos. Com todos os que me rodeiam e os que estão ausentes. E, curiosamente, é precisamente agora que me apetece mais escrever. Mais e mais. Nem que seja para dizer sempre o mesmo. Não importa o que pensa quem lê, importa o que eu sinto quando escrevo. Porque as palavras são minhas e para mim.


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